Por Lina Saheki
Foto de 2010, em comemoração aos 50 anos da chegada do Afurika Maru. Meu pai está sentado - é o primeiro da direita para a esquerda.
Quando comecei a ensinar japonês, contava uma história motivacional para os alunos. De que havia escolhido ser professora por causa de um pé de pitanga que fica no Bosque Polonês, em Curitiba. Ela é mais ou menos assim: em 2006, alguns meses depois de me mudar para Curitiba, meus pais – que moravam no Espírito Santo - me fizeram uma visita. Naquela época, eu morava bem perto do bosque em questão, e eles adquiriram o hábito, durante a sua estadia, de fazer uma caminhada matinal por essa área. Eis que uma manhã, meu pai, ao retornar do passeio, entrou no apartamento e me comunicou, seriamente, que iria escrever uma carta para a prefeitura.
Eu logo imaginei que a carta seria para tratar de alguma questão relativa à infraestrutura ou à segurança no bairro. Mas não era nada disso. Segundo papai, a carta começaria assim:
“Prezado Senhor
Eu sou o pé de pitanga que foi plantado ao lado da ciclovia perto do Bosque Polonês. Estou morrendo de frio. Por favor, me devolvam para a minha terra natal.”
Não pude deixar de sorrir enquanto meu pai, que havia visto a mirrada pitangueira, me explicava o sofrimento da planta. Lembro apenas de ter dito algo como “Só poderia ser papai!”.
Para mim, a graça dessa história reside, em parte, na inocência de meus pais. Reside, também, na memória guardada por essa compaixão. Afinal, eu mesma já havia percorrido aquele trajeto inúmeras vezes, mas meus olhos (seriam somente os olhos?) jamais estiveram abertos o suficiente para sentir a realidade dessa forma.
Talvez estivesse sempre envolta em meus próprios pensamentos e problemas, talvez estivesse com pressa, talvez não tenha sofrido suficientemente para alcançar esse grau de compaixão...
“Terra natal...” ele disse. Meu pai nasceu no Japão em 1944 e emigrou para o Brasil aos 16 anos para fugir da recessão do pós-guerra. Em 1960, meus avós e seus quatro filhos embarcaram no Afurika-Maru. Tempos muito difíceis, inacreditavelmente penosos.
Uma vez, há alguns anos, passeando pelo interior com meus pais e irmãos, vimos uma casa construída com alguns tijolos e paredes de pau-a-pique. Meu pai comentou, então, que havia vivido em uma casa semelhante em seus primeiros anos de Brasil. E que, à noite, o vento que entrava pelas muitas frestas trazia frio. Eu quase não consegui acreditar: afinal, como era possível que meu pai, aquele engenheiro aposentado sempre sereno e tranquilo, pudesse ter vivido aquilo há pouco mais de 50 anos?
“Estou morrendo de frio. Por favor, me devolvam para minha terra natal”.
Por quantos momentos de frio ele não havia passado? Quantas vezes não deve ter desejado retornar ao Japão?
Sei o quão difícil é conceber tais histórias e dificuldades que, felizmente, não vivi. Apenas as admiro, assim como a força e a determinação que se escondem sob a compaixão por todos os seres, valor tão caro à religiosidade japonesa, mas que se revela em singelas formas como “Eu sou o pé de pitanga...”. Compaixão, mesmo tendo vivido na pele o frio e a dor da separação da terra natal.
Meu pai até hoje ri quando lhe digo o quanto essa história (ou seria um Koan?) ainda me emociona. “Bakajanaika!” (“Como é boba!”), ele responde.
E o que tudo isso tem a ver com as aulas de japonês? É que eu queria que mais pessoas, ao ouvirem histórias semelhantes, descobrissem os valores e as dificuldades que se escondem por trás das palavras – e o poder de nossa própria história cultural. Que descobrissem que a beleza está, às vezes, bem aqui ao lado, travestida em pequenas sentenças familiares, na receita que é passada de geração em geração, ou no olhar demorado de nossos pais.
No fundo, no fundo, eu queria simplesmente que, ao contar uma história como essa, mais pessoas sorrissem. Com os olhos compassivos, ao entender, enfim, que também podem ser o pé de pitanga.
P.S. Depois de escrever, enviei um e-mail ao meu pai, pedindo permissão para colocar a foto que a ilustra. Eis a resposta:
“Lina, não tem problema usar a foto. Ontem, procurando algumas fotos , revirei todos os álbuns e lembrei dos tempos passados, inclusive de vocês pequenos. Certamente encontrei as fotos da casa de pau-a-pique que fizemos de pilares de eucalipto, bambu, sapé e barro, cheia de desesperos e sonhos. Mas o tempo se encarregou de transformar as dificuldades e sofrimentos do passado em "NATSUKASHISA/なつかしさ"(*), para podermos lembrá-los com carinho. ”
(*) -なつかしさ/natsukashisa pode ser traduzido nesse contexto como saudade.
Lina Saheki é diretora do Centro Ásia e professora de japonês. Participação especial de Hisayoshi Saheki. (O texto foi publicado originalmente no Jornal Memai, de Letras e Arte japonesa.)
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