Existe uma tradição de fim de ano no Japão chamada de “Oosouji”, expressão que pode ser
traduzida aproximadamente como “A Grande Faxina”.
Lembro-me de que durante toda minha infância e adolescência, não gostava do mês de
dezembro. Enquanto meus amigos programavam festas e aguardavam ansiosos os presentes
de Natal e as aventuras das viagens de férias, eu suspirava com resignada indignação pelos
longos dias de limpeza que me aguardavam. E, é claro, temia a inevitável pergunta:
“- O que você vai fazer nas férias? Onde você vai passar o ano-novo?”
Engolia em seco e respondia vagamente que ainda não sabia... mas como sabia! Afinal, havia toda uma programação de tarefas a serem cumpridas até o dia 1º de janeiro. O que não faltava em casa eram janelas a serem polidas, objetos e móveis a serem lustrados, banheiros a serem limpos, enfim, todas aquelas atividades domésticas das quais eu passava o ano inteiro tentando fugir.
Como não havia muita escapatória, eu e meus dois irmãos nos conformávamos e, ainda que a contragosto, trabalhávamos para que até a virada do ano não restasse um único canto sujo em nossa casa. Literalmente.
Os últimos instantes antes da meia-noite do dia 31.12 para o dia 01.01, então, eram
momentos quase decisivos. “Sem sujeira, sem sujeira...” - com esse pensamento, tínhamos
que recolher o lixo do jantar para fora de casa, lavar a louça, tomar banho, colocar a roupa na máquina de lavar. Só então, limpos e vitoriosos, brindávamos a chegada do ano novo.
“- Kampai! Kampai! Akemashite omedetou!” (“Viva! Viva! Feliz Ano Novo!”)
E, com um sabor de conquista, sorríamos ao contemplar nossa casa limpa, pronta para mais
um ano de luta.
Essa mesma cena, esse mesmo roteiro, era cumprido ano após ano, sem grandes alterações,
até que, como sói acontecer, os filhos (eu e meus irmãos), crescem e saem de casa.
Entretanto, mesmo morando longe, todo ano ainda volto para casa de meus pais nessa época
para, agora voluntariamente, participar do Oosouji. O engraçado é que agora, como sou
“visita” em casa, meus pais tentam me dissuadir da idéia da limpeza – mas sempre explico que eu, todo ano, aguardo ansiosamente por esse momento e que sinto genuíno prazer em passar essas férias limpando.
Na verdade, não sei quando aconteceu, mas em algum momento nesses últimos 10 anos,
desde que saí da casa de meus pais, percebi que a grande limpeza de fim de ano era mais
metafórica do que real, era mais interna do que externa. E que a faxina na nossa casa era só
um pretexto para nos fazer lembrar do pó que acumulamos em nossas vidas ao longo do ano, dos rincões sujos que devemos limpar em nossa alma, das peças preciosas que precisam ser melhor cuidadas, de vidros que estavam embaçados e de quartos que necessitavam de maior cuidado.
Um momento, enfim, que alia a percepção simbólica da necessidade de renovação ao
empenho pessoal para que as transformações aconteçam.
Demorei a perceber, mas hoje, recordando-me daquela criança que sofria um bocado com o
Oosouji, digo, com todo orgulho e com um imenso sorriso para as pessoas:
“- Vou passar as férias fazendo faxina!”
Texto escrito por Lina Saheki e originalmente publicado no JORNAL MEMAI - de Letras e Artes Japonesas.
Lina Saheki é diretora do Centro Ásia, fundadora do Projeto de voluntariado Dobrando Alegrias e professora de japonês. Apaixonada pelos estudos de Estética e Cultura Japonesa.
Ilustração de Simonia Fukue.
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